sexta-feira, 18 de novembro de 2011

NATUREZA MORTA


pub. dia 01/12/2008 por Thalita Uba uba_thali@yahoo.com.br

Olhou para o vaso. As rosas amarelas haviam murchado. Pétalas por toda a mesa. Pensou em pintar um quadro. “Natureza morta”, disse, inclinando a cabeça. “Verdadeiramente morta”, disse para o cachorro, que, com um ruído latido, concordou. Achou melhor se desfazer delas. Juntou todas as pétalas caídas e as jogou no lixo da cozinha. Reparou em como a pia estava cheia. Resolveu lavar a louça. Tinha este problema: nunca conseguia terminar o que começara porque sempre achava outro afazer no meio do caminho. Lavou toda louça. Lembrou-se da xícara de chá que deixara no quarto pela manhã. Resolveu lavá-la depois – já tinha guardado o detergente. Pensou em fazer outra xícara de chá. Desistiu. Voltou à sala. Olhou para o vaso. Resolveu pintar um quadro. “Natureza morta”, disse. E sorriu.

Pensou em desistir. Mas não tinha mais volta: as rosas já tinham espinhos. Pôs a aquarela em cima da mesa. Olhou desconfiada para o quadro, inclinando a cabeça. Havia algo errado. Rosas não deveriam ter espinhos. Tarde demais. Olhou para o cachorro deitado no tapete. Pensou que ele desaprovava suas rosas espinhentas e abatidas. “Tem razão”, disse a ele, que a fitou com olhos cansados. Levantou-se. Encarou o quadro por alguns minutos. Queria jogá-lo pela janela.

Pegou as três rosas mortas do vaso e abriu a porta do apartamento. Hesitou. Chamou o elevador. Achou melhor ir pela escada – não era digno que vissem suas rosas murchas. Desceu oito lances de escada, juntando todas as pétalas que caiam pelo chão. Não queria deixar rastros. Seria humilhante. Passou pelo porteiro sem encará-lo. Correu até a lixeira. Parou. Devia ser cautelosa. Não queria que suas rosas mortas fossem vistas pelas pessoas erradas. Pensou em colocá-las dentro de uma caixa de pizza. Achou melhor não. “Muito chulo”, disse em voz alta. Olhou para as lixeiras de lixo reciclável. Pensou que flores deveriam ser recicláveis. Ou transgênicas: sem espinhos. Enfiou as rosas em um saco de pão vazio e saiu correndo. Cumprimentou o porteiro. Chamou o elevador. Assoviou a música do filme da noite anterior. Pensou em ir correr no parque. Que dia lindo fazia!

Saiu do elevador e lá estava. No pior lugar possível: em frente à porta de entrada. Em cima do tapete de boas vindas. A lembrança dos espinhos das rosas mortas. Parou. Inclinou a cabeça. Pensou nas flores transgênicas. Abriu a porta, sem entrar. “Por que você deixou isso acontecer?”, gritou com o cachorro. Fitou o tapete. Agachou-se. Pensou em deixá-la ali pra sempre. Pegou-a. Ao entrar no apartamento sem tirar os olhos dela, chutou o sofá. “A culpa é toda sua!”, esbravejou, enquanto dava pulinhos em torno da sala, segurando o dedinho. Parou. Inclinou a cabeça. Tentou lembrar da última vez em que ganhou um beijo que valia a pena. Que valia a pena fazer qualquer coisa estúpida só para ganhar mais um. Não conseguiu. Sentiu o estômago revirar. Como era miserável. Foi para o quarto. Abriu o livro. Colocou a pétala da rosa morta e não transgênica entre suas páginas amareladas e o fechou com vigor. Estava morta.

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário