terça-feira, 8 de novembro de 2011

A PRAÇA

pub dia 18/11/2008 por Fabio Mattoso

Há tempos desejava aquilo, há tempos falta a coragem. Não sabia como seria depois. Se haveria depois. Como se sentiria.

Na verdade, ainda duvidava se agora teria mesmo coragem de realizar o desejo. O coração disparado enquanto se aproximava. O cérebro a mil. Andava de forma mecânica, não sentia os passos, apenas suas pernas se moviam. Por instinto talvez, por sobrevivência ou simplesmente por terem sido feitas para isso.
Algumas poucas pessoas caminhavam calmamente, aproveitando a noite normal do sul. Noite normal de Curitiba. Atravessou a rua e dobrou a esquina, logo avistando a praça deserta. E lá estavam eles. Ainda longe. Pensou em parar. Desistir e retornar. Mas não. Esperou muito tempo por isso, e tinha de ser agora. Continuou firme em seus passos. Bem, não tão firme assim, pois sentia as pernas tremulas, os músculos desfalecidos, pareciam uma gelatina. A tensão na nuca chegava a doer.
Respirou fundo. Procurou se acalmar. Conseguiu parar de tremer, enquanto se aproximava. Observou ao redor, não havia ninguém. Só eles na praça mal iluminada por um solitário poste. Poste que seria a única testemunha de sua realização. Pareciam não ter visto que se aproximava, pois continuavam como antes, começou a imaginar como seria, olhar em seus olhos, ver seus lábios se abrirem, a voz ecoando nos ouvidos. Pensou em cada detalhe. E tudo isso passou em sua mente como um filme acelerado.

Lembrou de quando desejou a primeira vez, ainda adolescente, o que estava indo fazer agora. Estava deitada em sua cama, trancada no quarto, lendo e fumando escondida de sua mãe. E começou a pensar que deveria realizar alguma coisa empolgante na vida, algum ato que ficasse marcado em sua memória, algo de importante. Teve a idéia, mas logo a afastou da mente, pensou nos transtornos que poderia trazer se alguém descobrisse. Sua família, o que diria? Mas nos dias seguintes a idéia sempre retornava. E depois por toda sua vida. Estava agora com vinte sete anos, e há doze convivia com a idéia.

Sempre que a pasmaceira da rotina a atacava, pensava em realizar algo. A mesma idéia sempre. E sempre o medo. Mas cada vez detalhava mais, cada vez planejava mais. Pensou que poderia ser em uma boate. Ninguém iria ver. Ninguém iria saber. Só o escolhido. Ou os escolhidos. Pensou em um cinema. Pensou na praia. Até que viu esses dois, ali na praça a noite. Bem no caminho de casa enquanto voltava do trabalho. Notou que estavam todos os dias ali. Embaixo de uma árvore, escondidos. Sentia o cheiro da fumaça vindo e imaginou que deveriam fumar um baseado ali, escondidos, onde ninguém os veria.
Isso. Ninguém os veria. Ninguém a veria. Sim. Era agora. Eram eles os escolhidos. Finalmente poderia realizar seu desejo. Durante dias observou os dois. Estavam sempre ali. No mesmo horário. Observou a rotina do lugar, sempre deserto, sempre mal iluminado pelo poste. Alguns carros passavam, solitários e raros.

Não sabia como conseguir o que precisava sem chamar a atenção, não tinha coragem de ir até uma loja comprar, mas em uma noite, no centro da cidade, viu uma rua povoada por drogados e prostitutas, abordou uma e questionou como poderia conseguir o que precisava. Ela conhecia alguém e a apresentou, no mesmo dia adquiriu o que queria.

Pronto. Só faltava resolver que dia seria. E hoje quando acordou estava decidida, seria hoje. Tomou um bom banho, passou o melhor creme, perfumou-se, vestiu-se de forma sensual. Isso a fez sentir-se forte. Muito forte. Foi ao trabalho e o dia se arrastou. Horas que não passavam, até que o expediente acabou, veio com pressa, talvez medo de desistir.

Agora estava ali, de frente para eles. Alcançou a praça, eles perceberam sua chegada. Será que nessa luz 
fraca poderiam ver seu rosto? Notariam como estava bela? A alegria em seu sorriso? A Ansiedade em seus olhos? Não tinha mais medo. Estava ali e sentia que o mundo era seu agora. Apresentou-se, pediu uma bola do baseado. Eles a atenderam. Tragou fundo, sentindo o prazer do momento. Agradeceu, olhou bem nos olhos de cada um, e agradeceu novamente, por terem proporcionado esse momento. Eles se olharam, sem saber o que dizer.

Abriu a bolsa e sacou a arma, engatilhou e atirou. Acertou no pescoço do mais alto. O outro gritou assustado e tentou correr, ela apertou o gatilho novamente e acertou as pernas dele, que caiu. Se aproximou, mirou na cabeça e atirou. Voltou ao primeiro atingido, caído no mesmo lugar e deu mais um tiro, na cabeça também, para ter certeza do serviço bem feito. Pegou o baseado caído no chão e apagou, guardou na bolsa, era melhor não deixar vestígios. Olhou para os lados, nenhuma testemunha.

Saiu do lugar andando, com calma. Bem mais calma. Parecia que finalmente sua vida estava completa. Podia lembrar do terror nos olhos deles, quando sacou a arma e apontou. Ela seria a última lembrança deles. Seria a pessoa mais importante na vida deles. Foi embora e naquela noite dormiu em paz, depois de tantos anos. Finalmente realizada.

Dois dias depois leu no jornal a notícia sobre dois homens encontrados mortos em uma praça na tarde anterior. Não havia testemunhas e a policia suspeitava de um acerto de contas entre viciados. Decidiu mudar o caminho de volta para casa. Fechou o jornal e voltou ao seu trabalho em paz.


Janeiro, 2007.

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nota do editor: Fabio Michel Mattoso nasceu dia 11 de setembro de 1983. É casado com a Eliane, pai do Henrique, Gabriel, Miguel e Francisco. Coxa-branca e grande amigo. O cara é apaixonado pela noite e já foi dono de bar, o Dom Mattoso. Diz a lenda que um dia ele tomou trinta litros de chop numa festa. Mas acho que é papo!
cartaz do bar Dom Mattoso (rua Fernando Moreira, 135, centro, Ctba)
Por essa e por outras ele é o primeiro a publicar um conto no TiraGosto. Pois é, agora estamos recebendo crônicas e contos. Então faça como o Mattoso (que além de dar duro no Banco do Brasil e estar acabando o curso de Economia, escreve contos e poesias e publica!), mande seus textos pra gente: leandro.hammer@gmail.com
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