quarta-feira, 11 de julho de 2012

DÍSTICO DOS NEURÓTICOS

pub dia 22/03/2009 por Rodrigo Choinski 21/11/2007 às 02:23 - alternativistas-1@yahoo.com.br

Parte I

Meu pai quando tinha lá seus trinta anos já alcançara na empresa em que trabalhava um posto de respeito. Seu potencial técnico muito bem explorado o levou rapidamente a essa situação. O resultado disso foi a convivência dele, nesta época, com gente muito rica, desta gente não lembro nem o nome. O que não me sai da memória são os dias de festas, me deixavam na casa de um? amiguinho? rico, penso que era para economizar a babá, mas não sei.

No quarto, lembro muito bem, um longo trilho de trem, fazendas em miniatura, rios, pontes e montanhas, além de vários brinquedos muito vistosos. Eu ficava deslumbrado, mas sabe, na terceira vez eu já odiava aquilo. O motivo era Anderson, o dono da montanha de brinquedos. O garoto era um nojo, se perdia um jogo, chorava, se eu aproveitava para brincar com as raridades em uma escapada enquanto ele se distraía com Ana Cláudia, outra menina que odiava Anderson, vinha me acusando e inventava histórias para a babá.

No primeiro dia ela equilibrava as brigas, depois a coisa mudou, a parcialidade para com Dondom era um desacato, é, esse era o apelido ridículo de Anderson. Eu chorava de raiva. Penso hoje que o garoto reclamara com sua mãe sobre mim, pobre Nívea, a babá, deve ter sido esculachada.

Na quarta e última vez que estive naquela casa, nem olhei na cara do maldito Dondom, resolvi fazer uma traquinagem, esperei uma bobiada da Nívea, entrei e me tranquei no quarto dele. Ah que prazer eu senti em degolar o antipático Blaublau, um urso com cara de sonso, ele sempre ficava do lado do Dondom, toda vez, era certo. Mas minha vingança foi rápida e vociferante, com uma faca que eu roubara da cozinha e trouxera dentro de meu fiel escudeiro Alegre, uma sorridente centopéia de pelúcia, um pouco encardida, de quem jamais me separava, serrei a cabeça do traidor, depois arranquei os olhos e ainda cortei uma perna. É, eu não gostava mesmo do Blaublau.

Para o trem me inspirara no filme a ponte do Rio Kwai, que havia assistido a pouco tempo com meu pai, tudo bem que não havia tempo para detalhes, mas uma pilha de super-homens, batmans, changemans e giraias, todos devidamente esmagados e quebrados com a ajuda da porta do armário, representavam os mortos e feridos. Nem preciso falar do estado do trem, também vítima da pesada porta-prensa.

Os barulhos chamaram a atenção de Nívea e, é claro, Dondom veio ver o que acontecia em seu reino particular. Minha primeira resposta às investidas da babá batendo na porta foi o barulho do vistoso aquário partindo-se em mil pedaços arremessado contra a escrivaninha com tampo de vidro. Esta parte foi a mais traumática do episódio, não porque eu havia me cortado em um pedaço de vidro, o que me custaria um ponto na panturrilha e o fim do prazer no resto do caso, já que me assustara com tanto sangue e não pude conter o choro. O que me fez mal foi causar a morte dos três peixinhos coloridos, sempre imparciais com aquela cara característica dos peixes, os pobres inocentes se debateram e morreram, um em cima da cama encharcada os outros em meio ao caos que eu transformara a escrivaninha.

Foram dois meses com a consciência pesada, sabia o nome de cada um deles, todo dia neste tempo rezei por suas almas, pequenininhas, de peixe de aquário. Eu que não sabia que as grandes batalhas cobram seus mortos, mas mesmo assim me arrependo de ter jogado o aquário, pelos peixes, só por isso, pois o barulho foi a gota d?água para o desespero de Dondom. Nívea já batia com força na porta, mas a mirrada adolescente não tinha força para arrombar, devia ter vindo do interior ou da periferia pois era pequena, tinha, o quê, uns 16, mas aparentava uns 13.

Andersom estava furioso, seu império caíra em mãos bárbaras e não sabia o que acontecia lá dentro, só ouvia o barulho de um furacão, além de choro. Jogou-se então o menino como um aríete contra a porta, e de novo e de novo, mas portas de ricos não cedem facilmente, certamente era de imbuia maciça e com uma boa tranca. Isto me motivou, o sangue dera uma trégua e o susto havia passado. Havia outro alvo óbvio, escalei a prateleira, derrubando tudo no caminho, no alto um lindo aeromodelo e um barco dentro de uma garrafa. Minha experiência com vidro me fez ser bem mais cuidadoso ao arremessar o barco. O aeromodelo joguei em cima da cama, desci. As pancadas na porta não cessavam. Abri a janela, era no quarto andar, estrebuchou-se lá embaixo, digno de um kamikaze, ainda vi o rotweiller cheirar, esnobe, a aeronave destruída.

O caos estava formado e a porta não se abria. Por mera progressão dos fatos abri o guarda-roupa e joguei o que pude para fora. Lá dentro havia um jogo de tintas, era o próximo passo, pintei o que pude. Na parede branca escrevi? Dondom dondoca?, que ele odiava. A raquete de tênis usei para bagunçar o que ainda estava inteiro e no lugar. Por fim joguei pela janela um bonito brasão do Coritiba Futebol Clube, meu pai era Colorado assim como eu, na época.

Ao parar escutei o choro da tímida Ana, não tinha boca para nada, era pouco mais nova que a gente e preferia aceitar as manhas de Dondom a enfrentá-lo. Sempre acabava chorando, quando o abuso se tornava mais intenso. Agora ela chorava por minha causa, devia estar com medo, assustada com tudo aquilo. O choro de Ana amolecera meu coração, mais que os peixinhos, e no fim ela era minha camarada, vítima da mesma situação… não faria mais nada.

A missão parecia cumprida, agora era esperar as conseqüências, juntei Alegre do chão, estava molhado, sujo de sangue e de tinta, quase um veterano de guerra. Esperei por algum tempo sentado no chão, olhando aquilo tudo, era tão horrível e tão bom ao mesmo tempo.

As pancadas cessaram, barulho de fechadura, a porta se abriu, uma chave reserva de certo. Veio a reação. Nívea estancou diante da balburdia estava vermelha de raiva, avançou sobre mim, agarrou-me pelas duas orelhas e me levantou. Abracei Alegre e fechei os olhos. Quando ela me soltou voltei a abrir, ela dava fortes tapas na minha bunda me levando para fora do quarto.

Na porta Dondom estupefato, quando caiu em si avançou sobre mim, eu estava cercado. Ana assistia tudo, com cara de choro, por trás de Anderson. Como tinha as mãos livres me defendi e antes que ele me acertasse mirei no meio da cara dele. Obviamente eu chorava muito, o que não impediu de eu por a cereja no bolo, Dondom estava lavado de sangue que saía de seu nariz.

Apanhei muito da Nívea aquele dia, meus pais e os de Anderson discutiram. Meu pai quis pagar os prejuízos o que não foi aceito. Apanhei mais depois, de meu pai ainda na casa de Dondom, pelo menos não foi na frente dele. Depois fui para o posto de saúde e nunca mais vi Dondom, entre mortos e feridos, foram-se os peixinhos, sobrevivemos eu e Alegre, praticamente intactos. Curti com gosto o longo castigo, sem Atari, nem rua, nem tevê.

Dois meses depois meu pai me levou pescar, depois do terceiro lambari de rabo vermelho, é, igual ao do Dalton, já não tinha tantos remorsos das mortes daquele dia.

Parte II

O que pouca gente prestou atenção aquele dia foram às manchas de sangue na porta, da mão de Anderson, que em seu desespero por medo de perder suas coisas e por sua raiva tentava em vão abrir a porta.

O sangue e as marcas de suas unhas cravadas com ódio na nobre madeira da porta.

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