sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O SORRISO BRILHANTE


pub. dia 31/01/2009 por Vanda Moraes - vandymoraes@yahoo.com.br

Como é bela a primavera. A juventude. É a época dourada, onde todos os problemas estão resolvidos por ora, onde tudo pode acontecer. E, lentamente o outono começa. Apenas para nos lembrar que nem tudo são flores, que a vida nunca é justa, que coisas ruins acontecem, sim.

Outro dia, em um dos departamentos do hospital, encontrei uma senhora. De imediato me cativou a atenção a dificuldade visível com a qual ela lutava para se locomover: passos arrastados, o corpo todo encurvado sobre o andador, as mãos como que não querendo obedecer os comandos que o cérebro lhe pedia para executar, o sorriso largo em um rosto cansado. Passo a passo. Ela seguia em minha direção.

Por um momento, me quedei apenas observando a sua evolução pelo corredor. Só depois percebei que ela não estava só. A fisioterapeuta, de cuja consulta  a senhora havia acabado de sair, amparava com paciência, era apenas um apoio auxiliando sem impedir que a senhora caminhasse com suas próprias forças. Os olhos voltados para a paciente com toda a atenção, as mãos que amparavam de uma forma quase filial.

A senhora se vestia de uma forma simples, modesta, sem nada que pudesse despertar um comentário. Discreta. Na mão esquerda uma sacola, destas plásticas que a sustentabilidade manda que troquemos por sacolas biodegradáveis.

Era o começo da tarde. Eu, pretensa jornalista, estava no começo do meu dia de estágio, ainda escreveria uma reportagem e atenderia muitas ligações de jornalistas apressados em busca de notícias e de especialistas para encher as suas matérias de doutores com seus termos técnicos, já que isso sempre dá uma aparência de credibilidade. Então continuei, conversei com a senhora, com a fisioterapeuta, com outra paciente, com outra médica. E fui embora.

O dia tinha sido longo. A noite me trazia uma sucessão de assuntos nos quais pensar: o fim do mês que se avizinha com suas contas e prazos, aquele livro que ainda não consegui acabar de ler, aquele compromisso que tenho que cumprir… Eu, porém não pensava em nada disso enquanto procurava a chave perdida na bolsa na tentativa de abrir a porta. A imagem da senhora do hospital bailava em minha mente.

O grande problema da espécie humana (e meu, principalmente) reside na necessidade de tudo teorizar. Por que, me perguntei, esta cena em particular me tocou tanto a ponto de dela não me esquecer? Não pense, você leitor meu bom e talvez único amigo, que eu sou insensível. Sim, eu me emociono com a fragilidade e a complexa beleza da vida e de seus agentes. Mas eu estou todas as tardes em um hospital. Eu aprendi que as pessoas não têm plano de saúde, que elas ficam doentes, que elas definham dia a dia sob os olhos de seus filhos ainda menores e que ainda não sabem como sobreviver sozinhos. As pessoas morrem e não há nada, absolutamente nada que impeça isso.

Os obstáculos daquela senhora foram, depois eu soube, muitos maiores que os da maioria de nós, caro leitor. A médica começa a me contar, enquanto a senhora a observa com um olhar doce, ouve a própria história, eventualmente corrige algum detalhe. A mãe dela morreu no parto. Com dez anos (a médica frisa a idade), ela teve meningite. Em decorrência disso, ela ficou com seqüelas neurológicas, o que a deixou com os membros debilitados. “Amoleceu tudo”, me explica a senhora.

A medica continua. Quando ela tinha 35 anos, a madrasta morreu e ela foi morar em um abrigo, no qual está até hoje, 45 anos depois. E ela vem a este hospital todas as semanas desde 1961. E aqui ela é feliz: a senhora descobriu que consegue fazer tricô. As mãos, que no principio não conseguiam segurar as agulhas, agora confeccionam sapatinhos, casacos, blusas. E ela ri.

Mas, quando ela vinha, passo a passo em minha direção pelo corredor, eu não sabia nada disso. Ela conquistou a minha atenção em meio ao caos do hospital porque ela trazia um sorriso no rosto cansado. E por acaso, a luz que entrava pela única janela, por um breve momento, evolveu a senhora e a fisioterapeuta; seus olhos brilharam, me olharam com aquele sorriso cansado. Sorriso brilhante, em meio ao caos. Eu lembrei, por um breve momento, da primavera. E depois, fui embora.

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