sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A novela das cabines começa


Cinco de nós encontraram problemas com cabines e fomos temporariamente colocados em cabines de passageiros. Apesar do problema, ficamos felizes em ter um local confortável para descansar, então pegamos nossas malas e fomos direto para essas cabines.

Existe uma proibição aos tripulantes em circular pelas áreas destinadas aos passageiros, mas no nosso caso isso não funcionaria, pois precisávamos passar por elas para chegar as nossas cabines, que ficavam no interior do navio. Ainda deslumbrados com os 12 decks (assim são chamados os andares dentro da embarcação) do navio, fomos tomar banho e descansar, após um rápido passeio pelas dependências para situarmo-nos de onde estávamos.

Muitas leis dentro do navio não são tão estritas, e entre elas está essa de se mover por áreas de acesso restrito, pois todos os dias haviam comportas fechadas, o que nos obrigava a atravessar áreas de passageiros para chegar aos locais de trabalho.


No dia seguinte, após perceber que não arrumariam logo uma cabine para mim, e que se eu deixasse nas mãos deles acabaria em um quarto com filipinos ou alguém com cultura muito diversa da nossa, descobri a primeira malandragem que é necessário para sobreviver dentro de um local assim. Fui até a crew purser, uma espécie de secretária que é responsável pelos documentos do pessoal, uma asiática arrogante mas de pouca habilidade em perceber quando estão agilizando as coisas por conta própria, passei a ela os documentos necessários e dei o número da cabine onde estava um recém chegado que tenho a felicidade de chamar amigo, chamado Davi. Tinham dado a ele uma cabine para dois, mas ele estava sozinho e, graças a já referida desorganização, nem eles sabiam quantos haviam em cada cabine. Com o documento e o número da cabine, consegui meu crew pass, um cartão de acesso a cabine e acesso para fora do navio quando estivesse de folga.

Resolvido o problema da cabine, já descansado começa o trabalho. Primeiro dia, dezesseis horas de trabalho, com algumas horas de intervalo, mas como tínhamos de atravessar o navio de ponta a ponta (minha cabine ficava no deck 01, o trabalho no deck 12 ou no deck 04), gastávamos pelo menos dez minutos para atravessar o navio, às vezes mais do que isso pela demora nos elevadores. Começava a perceber algumas coisas.

Devo registrar aqui que, de minha parte não houve treinamentos para a função, nem perguntas sobre minha experiência na função, mas todas as noites tivemos de ouvir chamadas dos portugueses a respeito das falhas nos trabalhos. Felizmente, tive a oportunidade de trabalhar com um grande waiter, chamado Vitor Córdoba, colombiano com vários contratos de trabalho, que ensinou tudo com muita paciência e esmero.

Em uma ocasião, vi um amigo ser humilhado pelo português responsável pelos contratos por não saber todos os pratos que havia na cozinha. Acontece que o rapaz havia entrado comigo no navio, não deixaram ele ter acesso aos pratos e queriam que ele soubesse todos os pratos que havia no cardápio!

Aqui vale uma ressalva: Mister Sérgio, responsável pelo setor foi uma exceção entre os nossos chefes. Educado, competente e comunicativo, sempre foi acessível na medida do possível. Outros nem tanto.
Mas voltemos as cabines. O esperado é que elas sejam pouco espaçosas e isso se confirmou. Uma TV antiga com quatro canais de filmes sem legenda nos levava um pouco de distração, camas razoáveis (sugiro que se for embarcar, que leve travesseiros) e toalhas e roupas de cama são fornecidas aos crews, mas para lavar o uniforme e essas roupas do navio cada setor tem dias e horários específicos na lavanderia. A vantagem é que esse material é lavado por eles e o crew precisa se preocupar apenas com as roupas pessoais. Para essas, há duas alternativas: ou lava-se nas máquinas disponíveis na lavanderia (nem cuecas secam no banheiro da cabine!) ou se paga para um filipino fazer isso. O preço varia de acordo com a cara do cliente, entre 20 e 40 dólares. Pechinche sempre.

O banheiro das cabines é uma história à parte. Acontece que o navio tem 20 anos de uso e foi restaurado para uso esse ano, e com isso vieram problemas de infra-estrutura. Desde o primeiro dia que entrei na minha cabine, até o dia de minha saída, o vaso nunca funcionou. Pior, a água subiu e transbordou no banheiro, deixando um cheiro terrível. Foram cinco pedidos de manutenção, no último ouvimos de um dos portugueses que não poderia fazer nada e que nós não éramos prioridade. Acontece que a merda já estava saindo pelos lados.

Durante os dois dias que viajamos de Santos a Salvador, trabalhamos feitos loucos, pois o navio ficou todo esse tempo em alto mar. E duas centenas de banheiros de passageiros mais outros não sei quantos de tripulantes estavam com o mesmo problema do nosso banheiro. Vasos transbordaram nos carpetes, ralos de chuveiro entupiram e muitas reclamações foram feitas. Uma promessa de que o problema seria sanado e o navio de luxo sairia de Salvador em perfeitas condições foi dada aos passageiros, que desceram a passeio em Salvador pela manhã e voltaram a tarde com os mesmos problemas em suas cabines. Muitos trocaram de cabines, mas quase duzentos passageiros e alguns crews desceram em Salvador, revoltados com as condições da luxuosa embarcação. A vigilância sanitária entrou no navio, a polícia federal também, mas assim mesmo o navio partiu com os problemas que chegou. Outro fato estranho.


Durante a viagem, passageiros revoltados com as condições do navio buscaram agredir o capitão no saguão do deck principal, sendo impedidos pelos seguranças. A viagem segue tensa..

Mais explicações, muitos boatos e apenas uma certeza: eles ainda não sabiam o que fazer com o sistema hidráulico das cabines. Ao passar pelos corredores inferiores, sente-se o cheiro de água podre, mas ninguém diz nada. Meus pés, que como de todos os assistant e waiters tem bolhas, tem que pisar em chão sujo no banheiro para tomar os banhos necessários.

Ao chegar na bela cidade de Ilhéus, tenho duas horas de folga e decido tentar chegar a praia. Não deu, pouco tempo e uma certa distância fazem com que eu e minha colega Renata desistamos da ida a praia. Muito calor e desânimo se abatem agora.


Outra noite no restaurante, após passar o dia recolhendo pratos sujos, copos, talheres e servindo bebidas no deck 12, onde fica o buffet, e o trabalho noturno se estende das 18 horas até às duas da manhã. Os portugueses todas as noites nos fazem parar o trabalho, para dar suas palestras, durante 15 à 20 minutos antes da abertura do restaurante, onde pouco se aproveita. Esse pouco pode ser dado a chefe de cozinha, uma brasileira chamada Teresa, muito competente e com grande conhecimento na área.

A melhor parte da noite sempre vem após o fechamento do restaurante. Depois de muito trabalho, todos se dirigem a cozinha, onde jantamos e sentamos para conversar no crew bar, área de lazer comum a todos os tripulantes. Lambemos nossas feridas, tomamos uma cerveja e por volta das três horas nos recolhemos as nossas cabines.

Na média que fiz das horas dormidas em nove dias dentro da embarcação, pude ver que meu tempo de sono ininterrupto seria de cinco horas por noite, pouco para recuperar os pés e a mente. O banheiro sujo, as dificuldades em arrumar de forma organizada os uniformes, os horários de trabalho, a falta de educação de alguns superiores, a rota do navio que nos dava mais de três dias de navegação em alto mar sem paradas (dois dias de Santos a Salvador, mais um dia de Ilhéus a ilha privativa), a mudança de fuso horário (o nordeste não tem horário de verão) semanalmente e a consciência que o valor financeiro não era tão promissor fizeram eu decidir pela saída da embarcação. Entre os brasileiros, muitos estavam decididos a sair, ou dentro de um mês, ou no final da temporada brasileira, e poucos queriam trabalhar na Europa. Não sei quantos ficarão, mas comigo outros cincos decidiriam sair em Santos.


Para quem quer trabalhar como waiter ou assistant waiter (garçom ou assistente), vale ressaltar que o valor oferecido como salário é pago somente se as “tips” (gorjetas) não ultrapassam o valor oferecido. Em oito dias de trabalho (o primeiro dia não contou) recebi o valor de 420 dólares, mas descontaram na minha saída o uniforme que devolvi integralmente, mais 300 dólares que, segundo a purser, eram despesas de reembolso para trazer outra pessoa no meu lugar. Mas espere um pouco, eu não dei despesas nenhuma para eles, nem de passagens aéreas nem rodoviárias! Como disse um amigo castelhano, todo navio é negreiro. Restaram 74 dólares de lucro e a alforria ao final da viagem. Assim como vimos dez dias antes os rapazes saindo alegres de dentro do terminal de embarque, agora era nossa vez.

Dez horas de espera para pegar o ônibus, algumas cervejas em um shopping de Santos e mais três horas de conversa com um nova-iorquino e sua esposa na rodoviária de Santos, onde recebi o primeiro elogio desde que comecei essa empreitada. Keith, o nova-iorquino de 52 anos, elogiou meu “accent” (sotaque) e disse que meu inglês estava muito bom. Senti que podia ir em frente e que 2009 seria um ano melhor. E, apesar de todos os problemas, quero no fundo do coração que todos os problemas que passei se resolvam (principalmente os banheiros!), pois deixei bons amigos dentro daquela embarcação.

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Um comentário:

  1. Garbln Says:
    janeiro 2nd, 2009 at 10:38 am

    Caramba, que furada. Parabéns por ter saído dessa com sanidade para escrever o relato.

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    Gladson Says:
    janeiro 10th, 2009 at 12:17 pm

    Valeu pessoal, acho que tive um pouco de azar em pegar esse navio com problemas, mas o pessoal que estava lá (brasileiros principalmente) foram muito legais. eu digo que a experiência é válida e se puder, volto pra outro navio, agora com experiência de onde vou pisar!

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